(Droplet) – mozambique – (English | Português)

A toy © Gökhan Kayal in Clam Collectors of Maputo

Luís Carlos Patraquim lives, but I read him as if he never lived. When I cogitate of his life, I sight odd coppery faces and calcined terrains, the hollowing of plasters in the decrepit walls and fences of Lourenço Marques, a sublimation spawning the vividness of Mozambique in memory, a Mozambique that can only wound memory akin to the rattling of trains; we primp the man, he has no pulse, but acacias bloom and fade within; we primp the man which primps itself by his own labour, and a parsonage remains, history, a seamless image.
The image-of-man is defenseless, exists only in exposition, in row with other images inasmuch as one cannot probe the colour of irises, begginings of laughter or threads, one cannot see sortileges that aren’t extenuatingly pestiferous, nor loves without the clatter of taking steps with a shattered heart; nothing lives in these men, nor is there will to give them such textures, as we are not soothed by seeing such images as articulated flesh, we do not care for the mensuration of their days, or the instances of vitreous fear for time: a first kiss, a first flight, the ontology of a motherly caress, or the satin fever of nights. There is so much to being, so much that refuses to be transfigured in narrative movements, so much matter centred in itself, held in a tattered cloth which is twisted, and twisted, twisted tirelessly for some droplets of varnish. In my manufacture of symbols, I see swollen ossuaries, bronze wheat-ears and cans of castor-oil, and there, I see Patraquim, scanning the acacia’s thirsty leaves.
I see him distantly, cindery, as an ornament of my youth when I would grip any poem whose language allowed for my understanding, before I balanced myself with the rabble of cities, before I was an image-of-man; that, perhaps, goes mostly unspoken. Some speak of machinery, filters and filtering, of means and censorship, vilifying aesthetics and the gelid action of refining a countenance, some speak of calculating innocuous improbabilities while calculating the probability of being understood. Lesser, it seems, speak of the editing of people, of the being made, created and formed by fictions, and I can say without contesting that I know more of those that never lived than I do those that live; I know myself more in the I which never lived, the I in constant persiflage towards improbabilities, the I in a barrage of dreams and quests and pretensions tinted of the same coppery faces, engineered by books and almond-trees, seeing in them a more veritable texture than in the spent colours my eyes still receive.
Patraquim, the image-of-man, gushes in me those droplets of varnish — as if my image-of-man took form of an ewer — and so gushes Stevens, bleeds Hatherly and Sebald, gushes the lad from the subway that crossed my eyes and timidly retracted his own, and I gush, outside, within, impish droplets that inflame me, small blades from a barbershop, small threads of faces petrifying slowly beneath the stepping noises.
Is there an autochthonous child, a storm’s prelude, a fleeting seagull that can cast a linen string over men and images-of-men, a life-saver that rescues them as they were, before they were images of lives? If there is, I fear that remembering that nude version of being may be more maddening than swallowing mercury.

(…)
And your silence, your silence, where
they bloom, bloodied, the acacias of Lidemburg Street
and Lagos shivers in blue and spawns
a styled solitude and a bull which recoils
in the labyrinth of an inflamed aorta,

your mouth, your mouth and your silence
and no longer the inquiry, none,
and your wonderment and that of stars, lightly
the torpid mist submerging your profile,

in the afternoon where I thread,
and the stone registered in a snowing sun.

Luís Carlos Patraquim in “O Círculo”

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Moçambique

Lúis Carlos Patraquim vive, mas leio-o como se jamais tivesse vivido. Quando cogito que lá terá vivido, vejo semblantes de estanho e terra calcinada, o escorchar do reboco lá nos muros e nas grades de Lourenço Marques, uma sublimação que engendra as forças de Moçambique na memória, um Moçambique que apenas fere a memória como o estertor dos comboios; ataviamos o homem, não tem pulso, tem acácias florindo e morrendo, ataviamos o homem que a si próprio se atavia em seu labor, e resta-nos personagem, história, uma imagem inconsútil.
O homem-imagem é inerme, existe apenas numa exposição, a renque com tantos outros, e não se dedilham cores de olhos, príncipios de risos ou traços, não se vêm sortilégios sem os mesmos serem extenuantemente pestíferos, nem amores sem o ruído acutilante dum coração em cacos; não há nada de vivo nestes homens, nem há vontade de lhes dar essa textura, não nos afaga saber dessas imagens como carne articulada, não nos interessa a mensuração dos seus dias, das instâncias de medo envidraçadas p’lo tempo: o primeiro beijo, o primeiro voo, a ontologia do desvelo materno, a febre acetinada das noites. Há tanto em ser, e tanto que não se transfigura em momentos narrativos, tanta matéria ensimesmada num trapo velho, que é torcido e torcido, torcido infindávelmente por umas quantas gotas de lacre. Na minha manufactura de símbolos, vejo os ossuários entúmidos, espigas de bronze e nas latas de rícino, e existe Patraquim, a perscrutar a sede das acácias.
Vejo-o na distância, cendrado, como um ornamento da minha juventude em que perfilhava qualquer poesia cuja língua me permitia que a lesse, antes de me sopesar na turba das cidades, antes de ser homem-imagem; disso, talvez, poucos falam. Falam da maquinaria, dos filtros e filtragens, dos meios e da censura, aviltam a estética e a forma gélida de editar o rosto, falam-nos do cálculo das improbabilidades inócuas, calculando a probabilidade de os enterdermos. Menos falam da edição das gentes, do humano crescido, criado, formado pela ficção, e posso dizer sem barganha que sei mais dos que jamais viveram do que sei dos que estão vivos; e sei-me mais no eu que jamais vivera, eu no chorrilho dessas improbabilidades, eu na torrente de sonhos e demandas e pretensões pintadas de cobre, um eu engendrado por livros e amendoeiras, vendo-lhes uma textura de realidade mais sincera que as cores exauridas p’los meus olhos.
O homem-imagem de Patraquim jorra em mim as gotas de lacre — como se o homem-imagem que sou fosse em forma de caneco — e jorra Stevens, sangra Hatherly e Sebald, jorra o miúdo do metro que se acanha por me cruzar o olhar, jorro eu, lá fora, cá dentro, pequenas gotas que me inflamam, pequenas lâminas de barbeiro, pequenas linhas de rosto que se petrificam lentamente ao passo dos ruídos.
Haverá uma criança autóctone, um prelúdio de tempestade, uma gaivota fugitiva, que lança sobre as gentes e imagens de gentes um cordão de linho, um salva-vidas, que as salve como elas eram, antes de serem fotografias de vidas? Se haverá, temo que rememorar essa versão nua seja mais enlouquecedor que beber mercúrio…

(…)
E o teu silêncio, o teu silêncio, onde
florescem, sangrentas, as acácias da Rua de Lidemburgo
e Lagos estremece em azul e punge
uma solidão ática e um boi se recolhe
no labirinto da aorta que infla,

A boca, a tua boca e o teu silêncio
e não mais a pergunta, nenhuma,
e o teu pasmo e o das estrelas, ao de leve
a cacimba lenta submergindo-te o rosto,

pela tarde onde caminho,
e a pedra se inscreve no sol que neva.

Luís Carlos Patraquim em “O Círculo”